O melhor remédio?
- Cerrado Vive!
- 26 de mai.
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Atualizado: 27 de mai.

Embora um medicamento geralmente seja efetivo para uma doença que se manifeste em diferentes pessoas, de diversas idades, em diferentes locais do mundo, um bom médico, antes de prescrevê-lo, analisa o histórico do paciente, inclusive suas gerações anteriores, possíveis condições adversas, interações medicamentosas, peso, idade e outros fatores. Pois eles podem interferir na eficiência do medicamento e, até, causar uma piora do estado de saúde.
A analogia nos parece válida para medidas que visam a proteção ambiental. Alguns métodos e técnicas, em que pese a existência de estudos que apontam sua validade em algumas situações, podem não ser adequadas para outras, ou mesmo podem impactar um ecossistema de maneira oposta à desejada.
A queima prescrita como panaceia para a conservação do Cerrado
Pode ser o caso da queima prescrita, o “remédio” recomendado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) para prevenir e controlar incêndios de grandes proporções e potencial destrutivo, em princípio em Unidades de Conservação.
Resumidamente, a queima prescrita, que tem origem nas práticas culturais tradicionais, consiste no emprego do fogo para incinerar a camada seca de herbáceas que se acumula sobre o solo nos meses mais secos do ano.
Regulamentada tanto pela Política Nacional (Lei nº 14.944/2024) como pela Política Estadual (Lei nº 17.460/2021) de Manejo Integrado do Fogo - que a elegem como “ferramenta para o controle de espécies exóticas ou invasoras” (Art. 5), a queima prescrita integra os programas de prevenção e combate a incêndios florestais, como no caso da Operação São Paulo sem Fogo.
Quando divulgada nas redes sociais, promovem-se seus supostos efeitos positivos, como a eficiência na redução do risco de incêndios florestais e sua contribuição na “restauração de habitats, no controle de espécies invasoras e na fertilidade do solo”. Do ponto de vista da segurança na administração, ressaltam-se os quesitos ambientais, sobretudo meteorológicos (umidade, temperatura, intensidade e direção do vento etc.) para a realização da queima prescrita. Por fim, quando a conversa vem a suas consequências indesejadas, sobretudo para a vida silvestre (plantas e animais), informações genéricas e superficiais induzem a crer que os benefícios excedam largamente os prejuízos em quaisquer condições, independentemente da extensão e do estado de preservação da área protegida. Não importa que se trate de um parque nacional de milhares de Km² ou de reservas naturais com dimensões bem mais reduzidas, verdadeiros enclaves no mar verde das plantações de cana-de-açúcar e das pastagens que tomou conta do interior de SP, como o remanescente de Cerrado da Estação Ecológica de Jataí, no município de Luiz Antônio, SP; ou de fragmentos de apenas poucas centenas de hectares sujeitos à pressão crescente da expansão da infraestrutura urbana. A bula com as indicações da queima prescrita não admite a possibilidade de ineficácia e nem prevê efeitos adversos.
Por outro lado, experiências de restauração do Cerrado, bem como os resultados concretos do manejo do fogo para prevenir grandes incêndios parecem desmentir tanto as supostas funções da queima prescrita no controle de exóticas infestantes - as quais, ao contrário, rebrotam com vigor e poder competitivo renovados, quanto sua infalibilidade para reduzir o risco de incêndios devastadores, como aquele que arrasou mais de dois terços da vegetação na EE de Jataí em 2024, onde a queima prescrita havia sido ministrada por anos consecutivos.
A adesão da UFSCar à Operação São Paulo sem Fogo
Em setembro de 2020, recorremos ao MPF para solicitar auxílio na fiscalização das providências de prevenção de incêndios tomadas pela UFSCar para proteger o fragmento de Cerrado onde se situa o câmpus de São Carlos, tendo em vista o visível acúmulo de capim às margens do fragmento e as condições climáticas - seca e calor - favoráveis às queimadas. (Nossa análise do caso pode ser conferida em nosso blog).
Na nossa manifestação inicial, indicamos diversas medidas de prevenção de incêndios, fundamentadas na literatura técnica e científica e tendo como referência a situação específica do fragmento de Cerrado na UFSCar: suas dimensões relativas, a contiguidade com vias de trânsito, a invasão por espécies herbáceas e arbóreas propensas à combustão e à difusão das chamas (é o caso dos capins de origem africana e dos eucaliptos), o cuidado para não interferir nos processos de drenagem e, sobretudo, a vulnerabilidade do fragmento de Cerrado, um dos poucos refúgios que restam na cidade para as plantas nativas e os animais silvestres. No centro das nossas proposições, estava a preocupação em priorizar as medidas menos disruptivas de um sistema já bastante fragilizado por sua proximidade da área urbana e da infraestrutura da universidade.
Ao longo do inquérito civil instruído pelo MPF a partir da nossa manifestação, a maior parte das nossas sugestões foram reiteradas por especialistas (técnicos do Ibama - Prevfogo e do Corpo de Bombeiros do estado de SP), tais como a manutenção anual dos aceiros, a manutenção de uma brigada e a roçagem dos capins exóticos.
Mais tarde, soubemos que a universidade, através da Secretaria Geral de Gestão Ambiental de São Carlos (SGAS), havia aderido à Operação Corta-Fogo de São Carlos.
Em 14 de maio deste ano (2025), a Universidade Federal de São Carlos anunciou a realização de queima prescrita em área vegetada do câmpus de São Carlos, como parte da Operação Corta Fogo.
Com isso, a Secretaria de Gestão Ambiental da UFSCar espera gerar “ganhos ambientais como a diminuição gradativa da vegetação invasora dessas áreas e a recomposição da vegetação nativa, seja por quebra de dormência das sementes ou redução da matocompetição”, argumentos estes que remetem a teorias sobre a natureza do Cerrado como bioma forjado pelo fogo, mas não necessariamente corroborados por levantamentos e estudos realizados no local.
Este será o terceiro ano de realização de queima prescrita, na mesma época do ano e no mesmo local.
Desde o primeiro ano, a adoção dessa prática nos causou preocupação, entre outras razões porque se soma a medidas particularmente agressivas de prevenção e controle de incêndios que a administração da UFSCar tomou depois daquele que, em 2021, destruiu parte da vegetação do fragmento de Cerrado no campus, como a ampliação dos aceiros com maquinário pesado - que escavou o solo em profundidade e arrancou árvores e arbustos nativos- e a remoção de eucaliptos em uma ampla área - que fez tabula rasa também da vegetação de sub-bosque - sem uma avaliação prévia dos efeitos que poderia causar sobre as plantas e os animais silvestres.
No caso das queimas prescritas, a falta de informações e dados precisos sobre as condições atuais da comunidade de plantas e animais que sofrerão as consequências do manejo do fogo em seu habitat nos causam muitas dúvidas sobre a eficácia e a inocuidade dessa prática no contexto específico do fragmento de Cerrado no câmpus. De quais espécies herbáceas nativas a SGAS espera que o fogo quebre a dormência das sementes? Caso isso ocorra, teriam essas plantas alguma chance de “vingar” diante da resiliência das exóticas infestantes, cuja cobertura e velocidade de rebrota após o fogo é muito superior? Qual seria o impacto da queima prescrita ministrada todo ano na mesma área sobre a continuidade das espécies de plantas que não dependem do fogo para germinar, mas que, ao contrário, poderiam ter suas estruturas de reprodução e dispersão prejudicadas? Quais animais sucumbiriam à queima prescrita e de que maneira outros se beneficiariam dos efeitos do fogo? Como prever os resultados concretos da queima prescrita na falta de hipóteses fundamentadas em conhecimentos e dados específicos?
A Semil/SP informa que, na prevenção aos incêndios no estado, tem investido em drones termais - “que fazem o monitoramento em tempo real de possíveis focos de incêndio em unidades de conservação” - e “mapas da Defesa Civil, que, graças a algoritmos e satélites, conseguem detectar possíveis riscos de incêndio ou identificar focos de queimada já existentes”. Não seriam estas formas - menos impactantes ao sistema ecológico de pequenos fragmentos - as prescrições mais recomendadas? Não estariam elas mais alinhadas ao perfil de uma universidade, onde se poderia envolver o corpo docente e contribuir com estudos sobre os impactos de tais tecnologias e seu melhoramento?
Ausência de continuidade de ações institucionais, de comunicação dos órgãos e entidades com a comunidade e de espaço para participação popular
No site da Operação São Paulo Sem Fogo, o governo do estado informa que investiu R$101 milhões no combate à onda de queimadas, com contratação de aviões e helicópteros, compra de viaturas e mobilização de pessoas. No portal da Agência de Notícias de SP, informa-se que “Equipes da Defesa Civil percorreram 8 mil quilômetros preparando agentes e brigadistas para o período mais crítico da estiagem”, com oficinas, treinamentos e simulados em 600 municípios paulistas.
Não tivemos notícia de nenhum tipo de ação preventiva em São Carlos. Em 10/05/2025, no site oficial do município apenas se comunica que “o Departamento de Fiscalização da Secretaria de Gestão da Cidade e Infraestrutura, em conjunto com o Ministério Público do Estado de São Paulo, reforça o alerta sobre a proibição do uso do fogo como forma de limpeza de áreas particulares”. Nenhum vereador apresentou o tema como pauta até agora.
Quanto à Ufscar, na matéria divulgada, afirma-se que “As áreas do Cerrado próximas à Estrada Municipal Guilherme Scatena, que sofrerão a queima prescrita, continuarão sendo monitoradas pela Secretaria Geral de Gestão de Sustentabilidade (SGAS) após o procedimento, para avaliar o comportamento das diferentes espécies de ocorrência local.”
No entanto, em 27/07/2023, solicitamos, por meio da Plataforma Fala.BR (NUP 23546.065449/2023-56), as seguintes informações à SGAS:
1. Plano inicial de trabalho e/ou de pesquisa envolvida na operação
2. Locais onde foi efetuada a queima controlada e superfície queimada, em cada local e na totalidade
3. Planejamento do acompanhamento da área onde foi efetuada queima controlada (antes e depois):
a) registro de espécies vegetais invasoras
i. levantamento de tipos e
ii. incidência (área ocupada)
b) registro de espécies vegetais nativas
i. levantamento das espécies e
ii. incidência (área ocupada)
c) registro de espécies animais
i. levantamento das espécies e
ii. áreas de ocorrência
4. Formas/métodos de avaliação dos resultados
5. Periodicidade prevista de avaliação dos resultados
6. Prazo ao longo do qual ocorrerá avaliação dos resultados
7. Meios de divulgação dos resultados à sociedade
8. Autorizações concernentes à atividade pelos órgãos competentes, se for o caso (favor indicar expressamente no caso de não haver necessidade de autorizações)
Em resposta, foram apresentadas cópias de dois ofícios: um da Polícia Militar do Estado de São Paulo ao Promotor de Justiça (Of. 9GB-012/907/2023), descrevendo como seria feita a queima e apresentando algumas justificativas, e um da Promotoria de Justiça de São Carlos para o Gerente da Agência Ambiental de São Carlos (Of. 70/23/7ºMP), com dois parágrafos, informando a realização da queima (o que se refere à questão 8). Infelizmente, nenhuma das demais questões que levantamos foi respondida em tal ocasião, nem foram divulgadas informações a esse respeito pelo site ou redes sociais oficiais.
Depois da grave queimada que atingiu as áreas verdes do câmpus da Ufscar, em 2021, a administração anunciou a criação de um Comitê Gestor Emergencial. Segundo a reitora, Ana Beatriz de Oliveira, “Com o trabalho do Comitê, pretendemos criar estratégias permanentes e robustas para proteger ainda mais nossas áreas de vegetação, com um trabalho focado em prevenção permanente e na produção de disseminação de conhecimentos para toda a sociedade e que possa evitar situações como esta em cenários futuros”.
No site Gestão Ufscar, noticiaram-se a primeira reunião de tal Comitê, em 05/09/21, e a segunda, em 29/09 (que foi virtual e aberta, da qual participamos) - na qual a reitora afirmou que “A ideia é que essas pessoas que participaram [da reunião] possam contribuir de forma longitudinal com o Comitê, que estará sempre aberto para incorporar novos parceiros e colaboradores”. Nada mais foi informado sobre suas atividades e nem se encontram informações a respeito no site da universidade.
Assim, temos um quadro - na cidade de São Carlos e em relação às áreas de vegetação de Cerrado onde fica o câmpus da Ufscar - de ausência de políticas continuadas e falta de informações e de canais de participação da população, que tem enorme interesse em saber que medidas têm sido tomadas para evitar incêndios (se houver alguma além da queima prescrita), como as medidas impactam a natureza, quais os embasamentos para tais ações, e, eventualmente, também participar ativamente da tomada de decisões.
Conclusão
Os impactos das queimas prescritas sobre a vida dos animais e sobre a capacidade de resiliência das plantas não têm sido objeto de discussões científicas e tampouco, no caso da UFSCar, de diálogo claro com a população.
Por um lado, incêndios recorrentes ou de grandes proporções têm causado perdas ainda incalculadas à biodiversidade, danos à saúde humana e sofrimentos aos animais que nunca serão medidos.
Por outro lado, sem o esclarecimento do real impacto da execução da queima prescrita no fragmento de Cerrado onde fica o câmpus da UFSCar, com suas particularidades, há margem para indagarmos se, de fato, tal medida é a melhor (já que sabemos não ser a única) para sanar ou reduzir os males das queimadas cada vez mais frequentes em nossa região.
Assim como queremos ser tratados por médicos criteriosos quando estamos doentes, a vida silvestre também precisa desse escrutínio antes de serem adotadas medidas supostamente saneadoras dos males que a ameaçam.
Alessandra Pavesi
Lara Padilha
Núcleo de Proteção Ambiental Cerrado Vive!
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