Certa vez uma senhora passava o rodo rapidamente sobre o piso da garagem havia horas e estava exausta. Quando perguntaram por que ela não fechava a torneira da mangueira, que jorrava água sobre o chão, ela respondeu: “Assim que eu conseguir secar o chão, eu fecho a torneira!”. E continuou puxando a água…
Assim parece planejar-se a reitora da Universidade Federal de São Carlos, a Sra. Ana Beatriz de Oliveira. Ao final da reunião aberta do dia 29 de setembro, para tratar sobre o “Comitê Gestor Emergencial para áreas atingidas pelo fogo”, a reitora, como resposta aos nossos questionamentos sobre o cumprimento dos objetivos e das ações previstos pela Secretaria de Gestão Ambiental e Sustentabilidade (link), afirmou que ainda não foram encaminhadas porque os funcionários da SGAS passam o tempo todo respondendo a processos no Ministério Público e, por isso, não podem dedicar-se a eles.
Os nossos questionamentos referiam-se especificamente à instituição e à implementação do “Conselho da SGAS” (do qual se diz que “vem sendo estruturado”), da “Política Ambiental”, do “plano de gestão ambiental” e do “Sistema de Gestão Ambiental”; ao “suporte aos relatórios institucionais de sustentabilidade; e ao diálogo entre “diferentes interesses existentes na comunidade acadêmica e externa no que se refere a questões com interface ambiental”. Pensamos que se houvesse um compromisso genuíno com essas metas, talvez não se precisasse de uma ação “emergencial” agora, e nos parece que na resposta da reitora houve uma completa inversão do raciocínio.
Se ela, assim como os administradores anteriores da universidade, e a SGAS cumprissem seus deveres legais na proteção das áreas naturais, tais como os previstos pela Lei 13.550/09 e aqueles relacionados à obrigatoriedade de licenciamento ambiental para a construção e o funcionamento de sua unidade de gestão de resíduos perigosos, por exemplo, não haveria motivo para que o Ministério Público ou qualquer órgão de fiscalização e cumprimento da lei os importunasse.
Ao apontar o dedo acusatório contra o MPF e a Justiça - que têm cumprido seu papel investigando e determinando a correção de irregularidades em obras nas áreas naturais desde 2014 - como se fossem responsáveis pela ineficácia da universidade na gestão das áreas naturais, a reitora comete um grave equívoco e pisa sobre o princípio da participação social nas decisões sobre um patrimônio ambiental que, por acaso, está sob sua guarda.
Há vários anos temos procurado exercer o nosso direito (legal) - que pode ser visto também como um dever (moral) - de atuar no controle social dessa importante área natural.
O controle social das ações dos governantes e funcionários públicos é importante para assegurar que os recursos públicos sejam bem empregados em benefício da coletividade. É a participação da sociedade no acompanhamento e verificação das ações da gestão pública na execução das políticas públicas, avaliando os objetivos, processos e resultados.
Este direito está garantido na Carta Maior:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
Por sua vez, o Princípio 10 da Declaração do Rio de 1992 defende que:
A melhor maneira de tratar as questões ambientais é assegurar a participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No nível nacional, cada indivíduo terá acesso adequado às informações relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas, inclusive informações acerca de materiais e atividades perigosas em suas comunidades, bem como a oportunidade de participar dos processos decisórios. Os Estados irão facilitar e estimular a conscientização e a participação popular, colocando as informações à disposição de todos. Será proporcionado o acesso efetivo a mecanismos judiciais e administrativos, inclusive no que se refere à compensação e reparação de danos.
Todas as nossas ações e manifestações que deram origem a processos resultaram procedentes e isso indica que as motivações eram lícitas. De fato, a Justiça e o Ministério Público possuem meios de evitar tergiversações sobre temas improcedentes, e se os administradores e gestores da universidade precisaram dar explicações à justiça, é porque as deviam.
Desta vez não foi diferente. A nossa representação no MPF protocolada em setembro de 2020 e motivada pela preocupação com a precariedade das medidas de prevenção e controle de incêndios em uma área natural de grande importância e vulnerabilidade ecológica e relevante papel na provisão de recursos hídricos, gerou o IC 1.34.023.000118/2020-98. Na manifestação inicial, ilustrada por abundantes registros fotográficos e fundamentada em literatura técnica e científica sobre causas e meios para prevenção de incêndios, pedíamos o apoio do MPF para averiguar se estavam sendo tomadas as medidas necessárias para evitar um desastre ambiental causado por queimadas e/ou incêndios, criminosos ou acidentais e, caso não estivessem, atuar para que a universidade as providenciasse com urgência.
A partir de 01 de outubro de 2020, o MPF oficiou o Corpo de Bombeiros e o PrevFogo/IBAMA para avaliarem a situação. Em resposta do Prevfogo (12/11/2020), o analista ambiental preposto recomendava a “manutenção anual dos aceiros, priorizando o período do fim da estação chuvosa e início da seca, ou seja, meados de maio/junho” e “estabelecer aceiros com no mínimo quatro metros de largura nos dois lados de extensão da cerca nos limites com rodovias [...]”, mas ressalvava que a análise havia sido feita exclusivamente com base nas informações encaminhadas pela Ufscar e que uma avaliação mais precisa necessitaria de uma vistoria técnica ao local.
No dia 7 de janeiro de 2021, após vistoria realizada com o acompanhamento das “técnicas agropecuárias responsáveis pela prevenção de incêndios na universidade”, o Corpo de Bombeiros informava o MPF que:
[...] não é apenas a distância dos aceiros que contribui para que não haja propagação de focos de incêndio, mas bem como e não menos importante, que a vegetação natural que cresce à beira dos aceiros, estradas e áreas de preservação, normalmente a espécie braquiária e que existe no local, esteja sempre baixa, rasteira, pois será esta a principal responsável pelo início e propagação dos focos, já que em períodos de estiagem esta vegetação torna-se extremamente seca e qualquer fagulha causada mesmo que acidentalmente já poderá dar início a um incêndio. Para isso, não é necessário a contratação de empresa especializada através de licitação, pois com poucos equipamentos que podem ser adquiridos, por exemplo um cortador de grama portátil e equipamento de proteção básica, poderá ser feito o corte desta braquiária ainda no período das chuvas, sem maiores complicações.
Na mesma manifestação, recomendava-se ainda:
a criação de uma “Brigada de Incêndio” com os próprios funcionários da área, onde explanamos às responsáveis que nos colocamos à disposição através de nosso setor de educação pública, a não apenas treinar esta brigada para combate a princípios de incêndio, bem como mostrar e orientar quais equipamentos são eficientes para a missão, ensinando-os a utilizá-los, o que de maneira direta nos ajudará em caso de acionamento emergencial.
No mesmo mês em que protocolávamos nova manifestação alertando para o fato de que a situação havia se agravado, e após sucessivos pedidos de dilação de prazo, a Ufscar respondia:
Com relação a constituição de uma brigada de incêndio, esclarecemos que o assunto possui natureza complexa, uma vez que coloca em risco a vida dos voluntários, o que envolve diferentes segmentos da Universidade.
Em virtude do exposto, a SGAS não possui competência técnica para estabelecer procedimentos ou planejar ações nesse sentido, sendo que sugere-se a consulta junto à Pró-reitoria de Gestão de Pessoas sobre a legalidade de se estabelecer tal brigada dentro da estrutura da Ufscar.
No entanto, segundo a Instrução Técnica Nº. 17/2019 do Corpo de Bombeiros da Polícia Militar - Estado de São Paulo da Secretaria da Segurança Pública, brigadista é:
pessoa voluntária ou indicada, treinado e capacitado para atuar na prevenção e no combate ao princípio de incêndio, abandono de área, prevenção de acidentes e primeiros socorros, numa edificação ou área de risco.
Assim, a pessoa se voluntaria para correr os riscos dos quais está ciente, e, ademais, é treinada e avaliada antes de se submeter a eles (e continuamente). Por isso, não compreendemos o motivo da recusa de formar uma brigada (entusiasticamente defendida na última reunião do Comitê do dia 29 de setembro), tendo em vista que os outros problemas - tais como a vasta invasão da área por vegetação exótica e inflamável, principalmente nas áreas que têm contato com as vias externas, conforme já havia alertado em novembro de 2020 o analista ambiental do Ibama - ainda não haviam sido atacados, e sem justificativas.
O pedido de prazo pela universidade para decisão sobre a criação da brigada ocorreu em 12 de maio de 2021. Não sabemos como conciliar a ausência de resposta até setembro de 2021 com a boa vontade esperada da universidade - e por ela propalada - e a urgência da situação.
Desde 2018, a universidade alega ter criado um “Protocolo de Uso e Manejo das Áreas Naturais e de Plantio Comercial da Ufscar”, e o tem brandido repetidamente à guisa de espada mágica para enfrentar os problemas na gestão das áreas naturais no câmpus. No entanto, das intenções contempladas pelo Protocolo, não se concretizou nem mesmo o “Plano de contingência de combate a incêndios florestais” (“estabelecer parceria com o Corpo de Bombeiros para construção de um plano de contingência para as áreas na Ufscar”).
Na reunião do dia 29/09, a Sra. Raquel Stucchi Boschi, chefe do Departamento de Gestão de Áreas Verdes, Biodiversidade e Agroambientes informou que o Protocolo “aguarda aprovação dos Conselhos”. Já a reitora afirmou que todo o processo de elaboração do Protocolo estava em papel, e que esses documentos foram perdidos. Na mesma reunião, acadêmicos defenderam planos de combate a capim exótico, formas alternativas de manutenção de aceiros, criação de brigada de incêndio, TODAS ações que já haviam sido recomendadas no âmbito do Inquérito Civil.
Para nossa grande infelicidade, aquilo que pretendíamos evitar aconteceu. No dia 5 de setembro de 2021, no meio da tarde, começou um incêndio na área natural de Cerrado no campus da Ufscar. O fogo iniciou nas proximidades da Rua Pedro Muszkat, paralela à rodovia SP-318, e alastrou-se rapidamente em direção ao fragmento de Cerrado.
Parece-nos que este incêndio, que impactou duramente a comunidade biológica e a população daquela região, confirma a insuficiência das medidas de prevenção adotadas para proteger o Cerrado no campus, especialmente diante do desafio prospectado pelas conclusões do último relatório do IPCC, de acordo com o qual os períodos de estiagem deverão se agravar e estender no futuro. Ao mesmo tempo, reforça a necessidade de mais - e não menos, como a administração parece preferir - controle social sobre aquela área natural e sua gestão.
Muitos se entristecem com os estragos feitos pelo fogo à vegetação e aos animais. Nós nos entristecemos igualmente com a desídia com que a Ufscar vem tratando ao longo dos últimos anos o fragmento de Cerrado no qual seu câmpus está instalado. A desculpa de que se deve à falta de tempo dos funcionários porque precisam ficar respondendo à justiça foi mais um lamentável episódio desta história.
Preocupa-nos, agora, que a tarefa de consertar os danos causados pelo incêndio fique a cargo das mesmas pessoas que permitiram que acontecessem, ainda que por omissão, motivo pelo qual solicitamos ao MPF (no âmbito do IC) e sugerimos à sociedade que acompanhem de perto os projetos anunciados e as ações realizadas em curto, médio e longo prazo.
São Carlos, 05 de outubro de 2021
Alessandra Pavesi
Lara Padilha
Comments