Importante notícia foi anunciada no dia 02 de novembro, no portal da Universidade Federal de São Carlos e replicada em canais jornalísticos e mídias sociais: o Conselho de Administração (CoAd) da universidade votou por preservar uma parcela de Cerrado de 47 hectares onde fica o câmpus de São Carlos. Segundo a divulgação, isso teria sido solicitado por sua Secretaria Geral de Gestão Ambiental e Sustentabilidade (SGAS) para que essa área, “bem como seus recursos naturais, não sejam explorados”.
Embora traga alívio e alegria aos defensores do Cerrado, especialmente àqueles que, nos últimos 14 anos, se empenharam para arrancar essa decisão das sucessivas administrações da universidade, a celebração daquilo que parece ser o desfecho de uma longa disputa sobre o futuro do Cerrado na Ufscar fica desvanecida pelo modo como a notícia foi divulgada.
Caberia perguntar de que “exploração” o fragmento de Cerrado precisaria ser protegido, já que a matéria não faz qualquer menção às ameaças que gravam sobre aquela área natural. Mas a ausência que nos parece mais grave na narrativa da Ufscar é a dos verdadeiros protagonistas: a Justiça Federal e o Ministério Público Federal, acionados pela sociedade civil organizada para proteger este fragmento de Cerrado. O que faltou dizer na matéria divulgada pela Ufscar é que a proteção permanente do Cerrado no campus da universidade é o resultado de uma longa luta envolvendo muitas pessoas, insatisfeitas com os planos de expansão sobre aquela área natural.
Em 2014, depois de ser obrigada pelo MPF a redimensionar seus planos de ocupação do Cerrado, já por efeito de um primeiro inquérito civil instaurado em 2007, a administração da Ufscar submeteu ao Conselho Universitário o projeto de uma avenida, que implicaria a supressão de parte da vegetação do fragmento de Cerrado, interrompendo um importante corredor ecológico e colocando em risco plantas e animais. Inconformados com a aprovação do projeto, participantes do Coletivo do Cerrado, representados pela advogada Sara Bononi, protocolaram uma ação popular [1] na qual pediam a revogação da deliberação do conselho, com fundamento na Lei 13.550/2009, que dispõe sobre a proteção do Cerrado no estado de SP. A ação popular foi juntada à ação civil pública já em andamento [2], e somente depois de anos de resistência da administração da universidade e de expedientes usados em sua defesa para convencer o juiz da inexistência de alternativas técnicas e locacionais, o projeto da avenida foi suspenso, ainda assim, com a única justificativa da falta de recursos para sua execução.
A preocupação com o caráter provisório dessa decisão e a demora da atual administração para traduzir em práticas efetivas sua promessa e seu slogan de campanha em 2016 - “100% Cerrado”, levaram, em 2018, à instauração de outro inquérito civil [3], movimentado a partir de uma representação das autoras deste relato, o coletivo Cerrado Vive!, no qual se solicitava que fossem tomadas as medidas cabíveis e necessárias para que a área em questão fosse formal e legalmente protegida, de maneira a evitar ameaças e/ou sua destruição.
Como réplica à solicitação do MPF, a defesa da Ufscar mencionava iniciativas e intenções da atual gestão que teriam atendido ao pedido expresso no inquérito civil, entre as quais a já mencionada desistência do projeto da avenida no Cerrado e a intenção de apagar do mapa seu traçado. Como se bastasse passar uma borracha sobre o papel para garantir a proteção permanente da parcela de Cerrado ameaçada.
A proposta de criar a figura administrativa da servidão ambiental prevista em lei para a adequada proteção da área se concretiza no seio de uma negociação de dois anos com o MPF, marcada pela morosidade ostensiva da Ufscar. Em reunião com o procurador, “A Ufscar mencionou a dificuldade de criação de algum tipo de unidade de conservação compatível com o local. Mencionou, ainda, que a criação de reserva legal impediria a utilização da área como compensação ambiental em caso de obras com impacto ambiental eventualmente realizada em outros campi”. [4]
Finalmente, já perto do vencimento do mandato da atual gestão, acordava-se que a constituição e registro de servidão ambiental satisfazem à exigência de proteção da área de Cerrado.
Não podemos afirmar o que teria acontecido com esta área de Cerrado sem a intervenção do Ministério Público, mas, pelos fatos aqui relatados, é possível supor que ela foi essencial para conquistar a proteção legal noticiada no dia 2 de novembro. É por isso que decidimos escrever esta nota: para manifestar o reconhecimento do mérito do Ministério Público Federal (na pessoa do procurador Marco Antonio Ghannage Barbosa) e, sobretudo, para mostrar que, por meio de ações organizadas, determinadas, fundamentadas na lei e na ética, a sociedade civil pode contribuir para a proteção do ambiente e da vida.
Para que a celebração da proteção do Cerrado seja completa, agradecemos a todos que se mobilizaram e atuaram para conquistar este importante objetivo.
Quanto à alegada posição exemplar da universidade em matéria de preocupação ambiental, acreditamos que se efetivará somente se a decisão de proteger e regenerar as áreas naturais em seu câmpus não precisar mais ser imposta pela justiça, mas for verdadeiramente espontânea e proativa. Enquanto isso, a sociedade deve se manter atenta e participativa.
Alessandra Pavesi e Lara Padilha
Coletivo Cerrado Vive!
São Carlos 05/11/2020
[1] Ação Popular nº 0002369-42.2014.4.03.6115, na Segunda Vara Federal da Subseção Judiciária de São Carlos-SP.
[2] Ação Civil Pública nº 0002428-30.2014.4.03.6115, na Segunda Vara Federal da Subseção Judiciária de São Carlos-SP.
[3] Inquérito Civl 1.34.023.000151/2018-01, na Procuradoria da República no município de São Carlos-SP, Cível - Tutela Coletiva, autuado em 25/06/2018.
[4] Doc. 52, p. 3 do IC.
コメント